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A Luta Pelo Futuro do Rio

Reading Time: 4 minutesMarielle Franco representava uma nova e empoderada geração de líderes de favelas. Apesar de sua morte, eles não pretendem recuar.
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Romerito Pontes/Flickr

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“Eles tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes” – Provérbio citado nos eventos do dia 14 de março, em luto à morte da vereadora carioca, Marielle Franco.

RIO DE JANEIRO – Quando o Brasil aboliu a escravidão em 1888, africanos escravizados representavam 40 por cento da população do Rio de Janeiro. Sem acesso a direitos, no que foi e continua sendo um dos países mais desiguais do mundo em relação ao acesso à terra, os escravos recentemente libertos, em sua maioria, se assentaram em comunidades informais – favelas – que hoje abrigam 24 por cento da população do Rio.

Mais de um século de políticas públicas, muitas vezes propositalmente repressivas e discriminatórias, tem impedido as favelas e seus moradores de realizarem seus potenciais e de fazerem uso total dos ativos que desenvolveram em suas comunidades.

Embora as condições fossem desfavoráveis a eles, moradores de favelas do Rio de Janeiro têm tido sucesso em tecer uma rede cultural vibrante e colaborativa através de gerações. Essa identidade da favela, emergente e mais positiva, tornou-se possível devido a uma crescente geração de líderes locais que assumiram papeis para organizar e melhorar suas comunidades e também confrontar autoridades muitas vezes negligentes.

Marielle Franco, vereadora morta a tiros em 14 de março – que as autoridades afirmam ter sido um assassinato direcionado – foi uma dessas lideranças. Uma mulher negra e LGBT, defensora dos direitos humanos e proveniente da favela da Maré, de 38 anos – Em um país onde um jovem negro morre a cada 21 minutos, uma mulher a cada hora, uma pessoa LGBT a cada dia e um defensor de direitos humanos a cada cinco dias – Marielle, mais que qualquer outra pessoa no Rio, representava esperança para os setores mais vulneráveis da cidade.

Mas ela não estava sozinha. Na verdade, se a comoção pública desde a morte de Marielle provou alguma coisa, é que moradores de favelas do Rio não desistirão de sua luta em mudar o status quo.

A sociedade brasileira ainda é, em muitas maneiras, baseada na estrutura escravocrata de nosso passado não tão distante. Favelas recebem muito baixa qualidade de serviços públicos cruciais, como a educação. A elite faz muito pouco para as favelas, que fazem muito para as elites. Uma vez eu escutei um membro da prefeitura dizer que as favelas são “boas de se ter por perto” para oferecer mão-de-obra barata e próxima.

A elite brasileira por décadas teve pouca iniciativa para mudar essa dinâmica e até hoje o governo continua estabelecendo empecilhos para o desenvolvimento das favelas. O principal exemplo é a preparação para as Olimpíadas (2010 – 2016) que investiu 20 bilhões de dólares na cidade. No entanto, os Jogos apenas exacerbaram as desigualdades no Rio, com muito pouco refletido nas comunidades mais marginalizadas da cidade. Além disso, usando a violência e a informalidade nas favelas como pretexto, as autoridades removeram mais de 77.000 moradores na preparação para os Jogos. Isto foi acompanhado por um novo padrão de desenvolvimento no qual moradores de favela foram forçados a se mudarem para habitações públicas periféricas, enquanto outras favelas passaram por gentrificação.

Mas enquanto o governo investe muito pouco no talento e no potencial das favelas, as favelas fazem muito para investir em si mesmas.

Marielle foi uma rara representante eleita entre centenas de mobilizadores e líderes que se organizam de forma colaborativa, amadurecendo e consolidando suas missões individuais e coletivas. Esses grupos estão encontrando cada vez mais espaço para se expressarem e reescreverem a narrativa sobre suas comunidades, muitas vezes através do ávido uso das mídias sociais. Eles acreditam, como Marielle acreditava, que “a favela não é o problema. É a solução“. A solução para moradia acessível e para a marginalização, para a negligencia e repressão. As comunidades se baseiam na resiliência e na resistência, à medida que jovens líderes estão cada vez mais reivindicando com orgulho o próprio termo “favela” – tendo em vista sua origem no robusta, resiliente e espinhoso arbustro que leva este nome – dado que todas essas comunidades se desenvolveram pela auto-organização.

Esses grupos foram ainda mais estimulados pelo assassinato de Marielle. Com Marielle, eles tinham uma mulher negra e favelada na Câmara Municipal, lidando diretamente com os problemas que enfrentam diariamente, do abuso policial à violência de gênero. Para eles, como para muitos outros, ela representou um futuro que eles estão determinados a concretizar.

Naturalmente, esse futuro não chegará da noite para o dia. Um dos últimos tweets de Marielle dizia: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” A mesma questão foi interrogada depois de sua morte na quarta-feira. Dois dias depois, a mesma pergunta foi colocada novamente, quando um menino de 1 ano e uma mulher de 58 anos foram baleados pela polícia na favela do Alemão, uma comunidade repleta de inovação e liderança juvenil.

Um coronel do exército se manifestou publicamente contra a “martirização de Marielle”, ignorando a experiência e o grande número de pessoas que se sentiram refletidas e representadas por ela. A verdade é que algo mudou fundamentalmente na consciência do Rio.

Agora, todos sabem o nome de Marielle. Agora, há uma fome de saber quem era essa mulher, o que ela representava, pelo que ela trabalhava e o que levaria seus assassinos a tomarem essa atitude. Ela se tornou um símbolo e uma inspiração, afirmando que uma mulher negra e favelada é fonte de admiração e coragem. Milhões de sementes de discernimento e determinação estão sendo plantadas em cada pensamento, sentimento, compartilhamento de sua mensagem, seu rosto radiante e sua presença forte. É inevitável que o Brasil será transformado. A questão é, quantos mais precisam morrer?

Dra. Theresa Williamson, urbanista, trabalha com favelas do Rio desde 2000. Ela é fundadora e diretora executiva da Comunidades Catalisadoras (ComCat), uma ONG de empoderamento, comunicação, centro de estudos e defensora de favelas fundada em 2000 em apoio às favelas do Rio. Ela também é editora-chefe do RioOnWatch, site bilíngue de notícias e relatos das favelas do Rio.

Tradução: Bruno Ferreira

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