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“Nossos corpos têm voz”: Um ano do assassinato de Marielle

Reading Time: 3 minutesUma reflexão sobre a vida e o legado de Franco
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Carl De Souza/Getty Images

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Para mim o que Marielle Franco tinha de mais forte era o corpo. O corpo como representação física mesmo. E tudo que vem junto com o conjunto, mas em partes separadas: voz, pele, cabelo, olhos, sorriso, braço. E tudo que as partes separadas produzem enquanto sensação: força, aconchego, energia, sensibilidade, beleza, coragem. Há ainda as sensações que não consigo descrever em palavras. 

Não foi à toa que nos dias seguintes a sua morte, Marielle teve o rosto, nome e corpo estampado em todos os lugares possíveis: pôsteres, grafites, camisetas, adesivos, bottons, vídeos e fotos, muitas fotos. Reparou como todo mundo tem uma foto com a Marielle? Todos têm uma história para contar sobre ela, junto com ela. Era impossível esquecer seu rosto, impraticável não reparar em seus dois “l’s”.

E essa talvez seja também a parte mais dolorosa, vê-la em todos os lugares.

É que tive o prazer, a oportunidade de passar com ela seus últimos momentos, de estar no último evento, de dividir com ela o lugar de fala de mulher negra e favelada. O coração ainda acelera e dói quando penso naquela noite de 14 de março de 2018. 

E dói também pelo antes, pela sorte de tantas rodas de conversa, mesas e palestras dividindo microfones. E mais, quantas festas e cervejas no Complexo da Maré, lugar em que ela nasceu e que me adotou como moradora. 

O poder do corpo

Desde a campanha política era o corpo que importava, a imagem de uma mulher negra, mãe, favelada, que já lutava por essas pautas, mas queria levá-las além. A ousadia de depois de anos trabalhando atrás como assessora, agora colocar a cara no mundo, na rua. Sua campanha foi feita em bairros nobres e em favelas, em territórios ocupados por diferentes facções. Mari caminhava com a firmeza de quem tem livre acesso a tudo e a todos, porque o objetivo era muito maior. 

Marielle Franco se elegeu em 2016 como vereadora pela cidade do Rio de Janeiro, eleita como a quinta mais votada em sua primeira eleição, mais de 46 mil votos. Havia uma distância enorme entre o corpo físico dela e o corpo físico dos que sempre estiveram nos lugares de poder. E Mari fez questão de trazer outras e outros, usar seu mandato coletivo para empretecer a câmara, trazendo também maior representação feminina.  

Foram dois anos de mandato focado especialmente nas questões de gênero e raça. Um corpo negro não sendo mais o beneficiado das políticas do Estado, mas ocupando e pautando o próprio Estado para suas especificidades. Marielle fazia compreender com seu mandato que os negros não eram recorte, mas a maioria e por isso o governo tem o dever de incidir em políticas públicas que levem o bem-estar social para essa população. 

O corpo vence

Em 2019 a escola de samba Mangueira, uma das mais tradicionais do carnaval carioca, levou para o maior show da terra um enredo que homenageava heróis anônimos e recontava a verdadeira história brasileira. 

Para mim houve a estranheza e a beleza de seis meses depois do assassinato, ouvir o nome de Mari ser cantado em um samba enredo, o lugar que tem a tradição de contar os fatos do passado, trazendo para a avenida algo tão forte e tão contemporâneo. Mas a estranheza passa quando se lembra dos fatos: Marielle foi assassinada no bairro do Estácio, centro do Rio de Janeiro, o bairro onde nasceu o próprio samba, negro por nascença e por tradição.

Em 2019 a Mangueira foi campeã do carnaval, mas de alguma forma se sente como se todos nós tivéssemos vencido. Logo o carnaval, em que muitas vezes perdemos sendo colocados como estereótipo, vencemos na potência de contar nossa própria história. 

A perda da Mari trouxe muitas vitórias e é absolutamente doloroso escrever isso, porque todos os que ganharam prefeririam perder, para que ela estivesse aqui na luta. Nas últimas eleições, três mulheres negras que faziam parte do seu mandato foram eleitas e mais tantas outras que vieram para a rua, colocando seu corpo como instrumento na luta política partidária. De alguma forma a desesperança na política foi substituída pela necessidade de ocupar o lugar que ela abriu. Muita gente só percebeu o tamanho do lugar que um corpo negro e feminino ocupa numa cadeira de vereadora depois da Mari. 

Ao mesmo tempo, percebeu-se a necessidade do cuidado com a preciosidade que é o nosso corpo. No corpo que foi açoitado ficaram as marcas da dor, tanto que muitas vezes era melhor não o olhar, para não sofrer mais. Esconder o cabelo, esconder os traços, esconder tudo que nos mostrasse ainda mais negros. Agora não, quanto mais se olha no espelho mais se conhece e mais se reconhece, mais forte a gente se torna. 

Corpo-memória

O cuidado permanece na preservação da memória da Mari, cuidar disso é também cuidar de todo o seu legado. Mas a maior luta segue sendo por justiça, que seus assassinos sejam julgados e presos. Mas mais importante que saber quem apertou o gatilho dos quatro tiros que a atingiram e mataram também o seu motorista, Anderson, é identificar quem foram os mandantes. 

Nesse um ano que se completa do seu assassinato eu sigo agradecendo cada minuto passado ao lado dessa mulher extraordinária e pedindo aos orixás que seu corpo-memória continua a nos fortalecer. 

É óbvio que a vereadora Marielle Franco faz falta. Muita! Mas que falta faz a Mari. Que falta…

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Lisboa is a journalist and presenter from Rio de Janeiro, currently based in Luanda, Angola.

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