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Depois de Marielle, essas mulheres estão mudando a cara da política brasileira

Reading Time: 4 minutesApós o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, em março, uma nova geração de mulheres negras toma posse.
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ZÔ GUIMARÃES/FOLHAPRESS

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Este artigo foi adaptado da nossa última edição impressa. Para acessar a reportagem completa clique aqui | Read in English

RIO DE JANEIRO—Quatro tiros na cabeça não conseguiram matar Marielle Franco. Seu corpo pode ter sido enterrado, mas sua voz, que antes ressoava apenas na cidade do Rio de Janeiro, propagou-se pelo resto do Brasil.

Em um país onde mulheres negras representam quase 30 por cento da população mas ocupam apenas 2 por cento do Congresso, o assassinato da vereadora carioca em março desencadeou um movimento genuíno. Mais de mil mulheres negras em todo o país decidiram disputar as eleições de 2018, concorrendo a vagas nas assembleias estaduais e no Congresso Nacional — um salto de 60 por cento em relação às eleições de 2014.

Muitas triunfaram, incluindo a própria chefe de gabinete de Marielle, Renata Souza, de 36 anos, que foi eleita deputada estadual do Rio e promete manter viva a memória da amiga.

“Enquanto eles continuarem assassinando nosso povo, temos que fazer alguma coisa”, disse Souza durante a campanha. “A gente não pode ficar parado. Não tem muito jeito.”

A polícia ainda não concluiu a investigação para determinar os responsáveis pelo assassinato, mas a maioria dos observadores acredita que o crime organizado queria  silenciar Marielle — e intimidar políticos que ousem defender os direitos de brasileiros marginalizados.

Se era esse o objetivo, as balas que mataram Marielle tiveram o efeito oposto, pois o assassinato de uma política negra e homossexual em pleno centro do Rio se transformou numa causa que foi muito além das fronteiras do Brasil. Cartazes com o slogan “Marielle Vive” foram vistos em Amsterdã e Nova York, além de Rio e São Paulo. A forte onda de apoio proveniente do “asfalto”, termo usado pelos moradores das favelas cariocas em referência aos moradores de bairros, ajudou a encorajar mulheres em todo o país a deixar o ativismo comunitário e entrar na arena política oficial.

A eleição de Renata Souza e de outras mulheres também ilustra como representantes de minorias estão se organizando — e, em muitos aspectos, com sucesso — após a eleição do ex-capitão do exército Jair Bolsonaro em outubro e a mudança mais ampla na política brasileira rumo à direita conservadora.

Renata era mais do que uma colega de trabalho de Marielle. As duas se conheceram há 18 anos no Complexo da Maré, uma favela com 130 mil moradores na zona norte do Rio, quando ambas tentavam realizar um sonho que pode ser difícil de alcançar para jovens que crescem em favelas: entrar para a universidade. Enquanto se preparavam para o vestibular, as duas criaram um forte laço, compartilhando a crença em direitos humanos e a vontade de ajudar a comunidade.

“Conseguimos entender qual era o nosso lugar na sociedade. E nosso lugar é de exclusão permanente”, diz Renata. “E quando você entende isso, vai lutar contra essa exclusão.”

Em 2006, elas fizeram campanha na Maré para eleger deputado estadual o ativista de direitos humanos Marcelo Freixo — um candidato branco de classe média. Depois de eleito, Freixo contratou ambas como assessoras. As duas mulheres trabalharam lado a lado na Assembleia Estadual por dez anos, dando apoio a Freixo, que liderava a comissão de direitos humanos. Mas outros ativistas comunitários começaram a pressioná-las para que elas saíssem das sombras e se candidatassem.

Marielle foi escolhida como candidata, mas o plano das duas era um projeto coletivo. “Nós pegamos a candidatura da Mari e fizemos o que fizemos: quase 50 mil votos sem nenhum dinheiro”, diz Renata. “Se não fosse ela, teria sido eu.”

“Poderia ter mudado tudo”, diz ela. “Podia ser a Marielle conversando com você agora.”

Renata foi eleita em outubro com ainda mais votos que Marielle: 63.937, tornando-se a nona deputada mais votada no Estado de 17 milhões de habitantes.

Três outras mulheres recém-eleitas também tinham uma conexão especial com a vereadora assassinada. Elas integram o mesmo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e, junto com Renata, foram apelidadas pela imprensa local de “as novas Marielles”.

As múltiplas candidaturas de mulheres negras são uma reação contra a morte de Marielle, mas também uma medida de segurança. Marielle era a única mulher negra na Câmara Municipal carioca, e muitos dizem que isso a tornava mais vulnerável. “Estávamos muito preocupados em não eleger apenas uma”, diz Freixo. “Não podemos deixar tudo isso nas costas de apenas uma pessoa.”

A mãe de Renata, Jorgelita, está orgulhosa, mas sabe que o grupo todo enfrenta riscos, incluindo a filha. “Eu não consigo dormir antes de ela chegar em casa”, diz. “Fico realmente preocupada.”

Renata estudou jornalismo durante anos. Sua ex-professora Raquel Paiva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, lembra de Renata visitando suas aulas quando ainda estava na escola secundária, mas já “sabia que tinha que falar pelas pessoas ao seu redor”.

Crítica veemente de como a mídia cobre a violência nas favelas do Rio, Renata escreveu sobre como os meios de comunicação tratam os moradores das comunidades como criminosos, em vez de cidadãos alvo de políticas de segurança pública violentas. “Ser jovem, pobre e negro é uma pré-condição para sermos representados socialmente como criminosos”, escreveu Souza em sua tese de mestrado em 2011.

As forças policiais do Rio estão entre as mais mortíferas do mundo. Até o final de outubro, policiais foram responsáveis por 1.181 das 5.197 mortes violentas no Estado, segundo o Instituto de Segurança Pública.

Bolsonaro, que disse durante sua campanha que “um policial que não mata não é um policial”, prometeu uma política de segurança ainda mais rígida ao assumir o cargo. Seu Partido Social Liberal (PSL) elegeu dezenas de deputados, incluindo Rodrigo Amorim. Uma semana antes da eleição, Amorim dominou as manchetes dos jornais ao quebrar uma placa em homenagem a Marielle Franco e exibi-la para uma multidão.

Amorim disse à imprensa local que vai lutar contra o PSOL pela presidência da comissão de direitos humanos na Assembleia Estadual. Renata prometeu não deixar que isso aconteça, antecipando mais batalhas pela frente. “A tentativa de presidir a comissão por pessoas que falam publicamente contra a dignidade humana é inaceitável”, diz ela. “Não vai ser sem luta.”

Andreoni é jornalista baseada no Rio de Janeiro. Seus artigos já foram publicados pelo The New York Times, revista New Yorker, BBC Panorama, a Agência Pública e outros. Ela foi pesquisadora do Centro Toni Stabile de Jornalismo Investigativo e da Columbia Journalism Investigations, em Nova York.


Tags: Dani Monteiro, Marielle Franco, Novas Marielles, Renata Souza
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