Politics, Business & Culture in the Americas

O que o Uruguai pode nos ensinar

O país está longe de ser perfeito. Mas a democracia mais forte da América Latina oferece muitas lições, incluindo o valor de uma forte rede de segurança social, escreve o editor-chefe da AQ desde Montevidéu.
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Esse artigo foi adaptado da reportagem especial da AQ sobre o Uruguai | Read in English | Leer en español

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MONTEVIDÉU — Foi uma cena que inspirou admiração, e até inveja, na América Latina toda. 

Na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no 1º dia de janeiro, não só um, mas três presidentes do Uruguai estiveram presentes: o atual líder, Luis Lacalle Pou, além dos ex-presidentes José “Pepe” Mujica (2010–15) e Julio Sanguinetti (1985–90 e 1995–2000), rivais históricos na política uruguaia, um de esquerda, outro de centro-direita, sorrindo e trocando tapinhas nas costas diante das câmeras.

Da esquerda para a direita: os ex-presidentes do Uruguai Julio María Sanguinetti e José Mujica, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e o atual presidente uruguaio Luis Lacalle Pou. (Foto: Sergio Lima/AFP via Getty)

Em outra época, essa poderia ter sido considerada uma cena banal. Mas no atual momento de extrema polarização e agitação social em toda a América Latina, a demonstração de união foi tratada como uma revelação no Twitter e em outras plataformas. “Os uruguaios são sempre tão civilizados, não sei como nos aguentam como vizinhos”, brincou Bruno Bimbi, jornalista argentino. “É por isso que o Uruguai é o Uruguai, a democracia de melhor qualidade da região e uma das melhores do mundo”, escreveu Daniel Zovatto, proeminente analista político baseado no Panamá. Os jornais brasileiros observaram com uma certa inveja o contraste com o próprio país: o antecessor de Lula, Jair Bolsonaro, não compareceu à posse depois de perder as eleições e, em vez disso, voou para a Flórida.

Na verdade, não é a primeira vez que o Uruguai parece estar em uma classe só sua. O país tem a maior renda per capita da América Latina (cerca de 17 mil dólares ao ano), o índice de pobreza mais baixo (7%) e registra um dos menores níveis de desigualdade da região. A matriz energética do Uruguai é a mais verde da América Latina, e sua economia deverá crescer saudáveis 3,6% em 2023, mais que o dobro da média latino-americana. Estudos internacionais frequentemente retratam o Uruguai como o país menos corrupto da região; a Economist Intelligence Unit classificou o país como a 13ª democracia mais forte do mundo, à frente do Reino Unido (18ª), Espanha (24ª) e Estados Unidos (26ª), e bem à frente de pares regionais como o Brasil (47ª), Colômbia (59ª) ou México (86ª).

Outros países da região e, de fato, do mundo estão de olho nesse sucesso. Uma conferência em maio passado promovida pela Universidade Católica do Chile intitulada “O caso uruguaio: um modelo possível?”  focando em como o país combinou crescimento econômico com uma forte rede de segurança social. O Uruguai está atraindo um número recorde de expatriados não só da Argentina, como costuma acontecer em tempos de crise, mas também do Brasil, Chile, Venezuela e outros países. A cidade turística Punta del Este tornou-se um ímã para trabalhadores remotos durante a pandemia, alimentando um boom imobiliário estimado em 6 bilhões de dólares em novos investimentos apenas nos últimos três anos; uma escola particular de lá tem alunos de 34 países diferentes. A ideia de que o Uruguai está se tornando uma espécie de Cingapura para a América do Sul, um relativo oásis de negócios e comércio em um continente conturbado, tem chamado a atenção tanto de empresas globais quanto de grandes potências; o governo conservador de Lacalle Pou abriu recentemente negociações para acordos comerciais com a China e a Turquia. Tim Kaine, um democrata do Comitê de Relações Exteriores do Senado americano, recentemente chamou o Uruguai de “um modelo de diversas formas” e questionou por que os Estados Unidos não estão investindo mais ou promovendo sua própria agenda comercial no país.

Diante de todo esse interesse, fui a Montevidéu em novembro na esperança de encontrar respostas a algumas perguntas: O que podemos aprender com o Uruguai? Quais são os segredos de seu relativo sucesso? Ao longo de uma semana, entrevistei políticos, analistas, líderes empresariais e cidadãos comuns em um esforço para entender os pontos fortes e fracos do Uruguai, e como outros países das Américas, incluindo os EUA, podem aprender com eles. Participei de um comício político, caminhei pela rambla, o calçadão na beira do rio que cruza a capital, comi um chivito, prato típico não oficial do país que consiste em um bife coberto com presunto, bacon, queijo e ovo frito. OK, eu comi dois deles.

Apesar de tantas delícias, uma das conclusões mais óbvias da minha visita foi esta: o Uruguai definitivamente não é um paraíso. É um país que provavelmente viveu seu melhor momento há mais de um século, quando as exportações agrícolas fizeram dele, por um breve período, junto com a Argentina, um dos 10 países mais ricos do mundo. Nos anos que se seguiram, houve longos períodos em que a economia quase não cresceu, e hoje os economistas dizem que o país registra um desempenho bem abaixo de seu potencial, com uma taxa média de crescimento anual de apenas 1% nos cinco anos anteriores à pandemia. Montevidéu parece uma versão mais cinza e muito menos dinâmica de Buenos Aires: mesmo nos bairros mais abastados, quase todos os imóveis precisam de uma nova camada de tinta. O Uruguai de hoje está lutando com uma onda de crimes bastante assustadora, incluindo uma taxa de homicídios que é o dobro da Argentina ou do Chile, impulsionada em parte pela expansão de gangues criminosas vindas de outras partes da região. Apenas cerca de 40% dos alunos concluem o ensino médio, uma das taxas mais baixas da América Latina, embora as notas obtidas em testes sejam altas para os padrões regionais. Durante a minha visita, um escândalo de corrupção envolvendo o governo de Lacalle Pou foi revelado, desafiando a reputação cuidadosamente cultivada de um país de governo limpo.

Da mesma forma, há motivos para se perguntar até que ponto o sucesso do Uruguai pode realmente ser reproduzido por outros países da América Latina. Muitos brasileiros e argentinos se exasperam, afirmando que é muito mais fácil governar um país com a pequena população do Uruguai, de cerca de 3,4 milhões de pessoas. (Esse argumento ignora o fato de que, digamos, Honduras e El Salvador também são pequenos.) Outros dizem que a história de imigração europeia do Uruguai o tornou um lugar “homogêneo” e, portanto, próspero. (Esse argumento é comprovadamente falso e também racista, mas já o ouvi muitas vezes.) Outros ainda dizem que o Uruguai pode ter alguns méritos, mas se beneficiou sobretudo dos erros da Argentina e do Brasil, consistente com sua história de ser um país pequeno à mercê dos ciclos econômicos de seus vizinhos muito maiores.

“Se as pessoas pensam que o Uruguai sempre foi assim, estão enganadas.”

—Ex-presidente Julio María Sanguinetti

Mas também é verdade que a história do Uruguai é mais, digamos, parecida com a de outros países da região do que muitas pessoas imaginam. A próspera democracia atual era ate 1985, uma a ditadura atormentada pelas mesmas polarizações e abusos de direitos humanos vistos em outros países do continente. O invejável índice de pobreza de 7% também é recente. Há apenas 20 anos, o índice chegava a 40%, em meio a uma crise econômica tão brutal que o Uruguai exportava trabalhadores qualificados aos milhares, não os recebendo como hoje. Até a camaradagem política exibida na posse de Lula deu trabalho para ser construída e sempre corre o risco de desmoronar, diz Sanguinetti, um dos dois ex-presidentes que inspiraram tanta admiração.

“Ah, se as pessoas pensam que o Uruguai sempre foi assim, estão enganadas”, diz Sanguinetti, no alto de seus 87 anos, com um sorriso. “Nada é fácil. Tenho certeza de que há lições que podemos humildemente oferecer aos outros.”

De fato, existem muitas. Mas com base nas minhas viagens e pesquisas, eu destaco quatro pontos-chave que ajudam a explicar a história imperfeita de sucesso do Uruguai:

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Uma rede de segurança social fortalece a democracia — e o capitalismo também

Mujica, o outro ex-presidente uruguaio que participou da posse de Lula, atraiu uma base mundial de fãs na década de 2010 que o via como uma espécie de oráculo do anticonsumismo: continuando a usar um Fusca de 1987 para ir e voltar de seu pequeno sítio nos arredores de Montevidéu durante os oito anos que liderou o país, em vez de morar no palácio presidencial, e também doou 90% de seu salário para a caridade. E embora Mujica nunca tenha sido tão universalmente popular em casa quanto no exterior, uma de suas declarações mais famosas captura indubitavelmente a ética uruguaia: “Nadie es más que nadie”, ou, numa tradução livre, “Ninguém é melhor do que ninguém.”

Essa filosofia igualitária chama a atenção na América Latina, onde a maior brecha entre ricos e pobres do mundo vem alimentando inúmeros conflitos sociais ao longo dos anos. E embora permaneça sendo mais um ideal do que uma realidade, essa postura sustenta o que, com base em alguns critérios, é considerado o estado de bem-estar social mais antigo e generoso da região. Hoje, cerca de 90% da população uruguaia com mais de 65 anos está coberta pelo sistema previdenciário, uma das taxas mais altas da região. O Estado fornece seguro-desemprego, transferências de renda para famílias de baixa renda, recursos para cuidar de crianças e idosos e um sistema de saúde pública gratuito.

É claro que o custo de tudo isso não é baixo. O Uruguai arrecada cerca de 27% do seu PIB em impostos, acima da média latino-americana (22%), embora menos que o Brasil (32%) e a Argentina (29%) e bem abaixo da média da OCDE (34%), um clube formado em sua maior parte por países europeus desenvolvidos. No geral, o governo desempenha um papel importante na economia do Uruguai: as empresas estatais dominam o setor de petróleo, empréstimos hipotecários e até transmissão de dados pela internet. Cerca de um em cada cinco trabalhadores está empregado no setor público, de acordo com o Banco Mundial.

Javier de Haedo, um economista ligado ao movimento de centro-direita do Uruguai, diz que a economia do país foi prejudicada por um ciclo prolongado de aumento das demandas sociais, aumento de impostos e reestruturações periódicas da dívida. “Essa é a história do Uruguai”, diz ele. “A única solução é crescer mais.” Lacalle Pou, o atual presidente, chegou ao cargo com uma agenda de reformas favoráveis ao setor privado após 15 anos consecutivos de governo do partido de esquerda Frente Ampla. Mas, por um golpe do destino, Lacalle Pou assumiu a presidência em 1º de março de 2020, 12 dias antes do primeiro caso de coVid-19 surgir no Uruguai. Ele passou grande parte de seu mandato até aqui gerenciando a pandemia em vez de aprovar novas leis.

Mas mesmo Lacalle Pou e seus aliados estão mais focados em fazer ajustes no sistema existente — aumentando a idade mínima para a aposentadoria, por exemplo — do que em derrubá-lo completamente. No Uruguai, ouve-se muito pouco da retórica acalorada sobre socialismo ou neoliberalismo que domina a política em outros cantos da América Latina. “Quase não importa quem está no poder; há uma espécie de consenso social-democrata que fundamentalmente não muda”, diz Nicolás Saldías, analista uruguaio para a América Latina da Economist Intelligence Unit. “O que se ouve são debates sobre taxas de impostos, mais do que sobre o próprio imposto.” Haedo, o economista crítico, reconhece que há “exemplos espetaculares” de boa administração por parte do setor público.

O modelo uruguaio pode não ser para todos. Mas numa época em que as demandas da população por mais direitos e serviços sociais varrem a América Latina, levando a protestos violentos e grave instabilidade em países como Chile, Equador, Peru e outros, é difícil não notar que o Uruguai continua… bem tranquilo. Mesmo após a pandemia, os uruguaios em geral sentiram que suas necessidades básicas estavam sendo atendidas. Em uma pesquisa publicada em maio de 2022 pela Organização das Nações Unidas, 37% dos uruguaios disseram que sua situação socioeconômica era boa, 48% a consideravam nem boa nem ruim e apenas 14% a consideravam ruim. Dada a relativa satisfação com o status quo, não parece ser por acaso que o Uruguai nunca tenha eleito um verdadeiro populista da extrema esquerda ou direita, e que ao mesmo tempo os pilares fundamentais de uma economia de mercado estável sejam amplamente aceitos.

Conversei com um grupo de jovens ativistas do Partido Nacional, de centro-direita, do qual Lacalle Pou faz parte, e eles também pareciam apreciar o equilíbrio. “As pessoas no Uruguai se sentem protegidas”, diz María Ángela Rosario, 27. “Não conheço ninguém que queira mudar isso de forma fundamental.”

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Devagar e sempre para vencer a corrida

Fazer algo a la uruguaya significa fazê-lo lentamente, gradualmente, deliberadamente. É um aspecto celebrado da cultura local—tão uruguaio quanto tomar chimarrão ou assistir ao pôr do sol sobre o Rio da Prata (e ambos, não por acaso, devem ser feitos a la uruguaia.)

E, como tantas outras coisas aqui, pode ser uma faca de dois gumes.

Quando uma nova legislação é proposta, os políticos dizem que ela geralmente é debatida e debatida — e depois debatida mais um pouco. As mudanças mais importantes geralmente acontecem por meio de plebiscitos ou referendos populares, que podem levar anos para serem organizados e têm sido usados desde a década de 90 para votar desde a privatização de serviços públicos e leis de anistia a políticas anticrime, direito à água e muito mais. Quando a mudança entra em vigor, às vezes o mundo todo já mudou. “Vi o Uruguai perder tantas oportunidades porque não conseguimos agir a tempo”, diz um advogado que trabalha com investidores internacionais, citando portos em águas profundas, centros de dados e muito mais.

De fato, mesmo em Montevidéu, o ritmo de tudo — do comércio, da política e da vida cotidiana — pode exigir certos ajustes daqueles que estão mais acostumados com Buenos Aires, Lima ou Cidade do México. Certa manhã, cometi um pecado capital para um jornalista: fiquei sem espaço no caderno de anotações. Eram 11h30 de uma quarta-feira e eu estava no centro da cidade. Encontrei uma papelaria a dois quarteirões; as chaves estavam na porta da frente, que abri lentamente, e esperei alguns minutos até que um homem mais velho, com a cuia de erva-mate na mão, apareceu nos fundos da loja. “¡Buen día!”, disse ele alegremente. “Nós não abrimos até, não sei, 12h45 ou 1 da tarde. Tente do outro lado da rua”. Lá, escutei de outro vendedor: “Ah, estamos sem cadernos. Volte na segunda ou terça. Ou você pode tentar do outro lado da rua”. Acabei desistindo e peguei emprestado um bloco de anotações de um jornalista uruguaio. Outros expatriados compartilharam histórias semelhantes de um país que raramente parece estar com pressa. Uma amiga de São Paulo me disse: “Todo dia eu tenho vontade de gritar.”

Mas adotar uma abordagem mais deliberada da vida tem suas vantagens, especialmente na política. Uma reforma pode levar muito tempo para ser aprovada — mas, uma vez aprovada, é considerada legítima e estabelecida, e as pessoas geralmente seguem em frente. “Temos uma cultura política de tomar decisões e depois aceitá-las”, diz Yamandú Orsi, prefeito de Canelones, cidade ao norte de Montevidéu, e possível candidato presidencial nas eleições de 2024. “O que pode parecer lento de fora geralmente é uma busca democrática por diálogo e consenso”.

Como resultado, o Uruguai tem pouco da política de terra arrasada vista em outras partes da América Latina, assim como nos EUA e na Europa, onde os governos costumam assumir o poder determinados a desfazer as conquistas de seus antecessores. Essa estabilidade dá segurança aos investidores — um senso de direção de longo prazo geralmente ausente no restante da região. “Tédio é bom. Meu Deus, eu queria que a Argentina e o Brasil fossem tediosos assim”, diz um investidor. Como tantas outras coisas no Uruguai, fiquei me perguntando se seria possível separar o positivo do negativo.

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As instituições importam, especialmente quando elas são acessíveis ao público

Enquanto eu visitava o país, um grande escândalo — pelo menos para os padrões uruguaios — havia estourado por causa de um esquema no qual funcionários do governo supostamente venderam dezenas, e talvez centenas, de passaportes falsos para estrangeiros, incluindo russos fugindo de seu país após a invasão da Ucrânia. Ao investigar o caso, os promotores também encontraram indícios de que o guarda-costas de Lacalle Pou tentou vender software que poderia ser usado para rastrear senadores da oposição. (O presidente, seu guarda-costas e outros funcionários negaram as irregularidades.)

Durante todo o processo, os promotores fizeram seu trabalho normalmente, sem interferência política, como é o costume uruguaio. “O forte senso de república faz com que o uruguaio médio entenda que nenhum dos poderes pode pisar no outro. Acima de tudo, o sistema judicial é uma salvaguarda”, diz Agustín Mayer, sócio do escritório de advocacia Ferrere. E embora o escândalo tenha sido claramente embaraçoso e um golpe para a reputação do país, alguns viram uma oportunidade para fortalecer ainda mais a democracia uruguaia. “O que vejo é a sociedade debatendo isso, processando, tentando entender o que aconteceu”, diz Adolfo Garcé, analista político. “É como nós fazemos. Esta é uma democracia com uma tremenda capacidade de aprender.”

“Active social movements have been the motor of Uruguayan politics and democracy.”

—Prefeita Carolina Cosse

Uma coisa que diferencia as instituições do Uruguai é como elas são abertas e integradas na sociedade. Quase todo mundo parece fazer parte de alguma coisa, um partido político, um sindicato, um clube de bairro, que por sua vez tem vínculos, ou pelo menos alguma conectividade, com o Estado. “Movimentos sociais ativos têm sido o motor da política e da democracia uruguaia”, diz Carolina Cosse, prefeita de Montevidéu e outra possível candidata  à presidência. Ela diz que praticamente “todas” as reformas de políticas sociais dos últimos anos começaram no nível de grupos organizados da população, apontando para a saúde pública universal, a igualdade no casamento e uma nova universidade no interior do país como causas que os políticos depois adotaram como suas. Cosse e outros destacaram a importância, em particular, dos partidos políticos: os mesmos três partidos dominam a política uruguaia há décadas. Eles defendem ideologias geralmente consistentes em vez de servir como veículos para líderes centralizadores, e contam com milhares de cidadãos comuns entre seus membros.

Toda essa mistura de pessoas comuns e autoridades eleitas também desmistifica um pouco a política — e aqui, ok, talvez o tamanho do país possa de fato desempenhar um papel. Quatro pessoas diferentes me mostraram selfies com o presidente Lacalle Pou, tiradas em sorveterias, restaurantes e na rua. Isso também pode contribuir para a cultura de transparência do Uruguai. “Se um político compra um carro novo caro, todo mundo fica sabendo. Moramos um ao lado do outro, nos vemos na mercearia”, diz Martín Aguirre, editor do jornal El País. Como que para provar seu argumento, ao sairmos do almoço (chivito, naturalmente), esbarramos com uma tia dele. Os dois conversaram por 15 minutos; quando saímos, ele sorriu e deu de ombros. “País pequeno!”

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Civilidade é difícil, mas vale a pena

Seria tentador concluir que a ênfase na civilidade política uruguaia também é um subproduto da convivência próxima entre as pessoas. Mas nem sempre foi assim — especialmente nas décadas de 1960 e 1970, quando o Uruguai caiu na mesma espiral de violência guerrilheira e repressão brutal que assolou grande parte da região. Em nossa conversa, Sanguinetti me disse que ele e Mujica costumavam ser “não apenas adversários, mas inimigos”, observando que Mujica era um dos líderes do grupo rebelde Tupamaro que não reingressou totalmente à vida política geral até a década de 1980.

Curar essas divisões exigiu tempo e esforço. Mujica, que passou 13 anos na prisão, fez declarações comoventes ao longo dos anos sobre sua própria jornada. “Tenho minha longa lista de defeitos, sou uma pessoa apaixonada, mas há décadas que no meu jardim não cultivo o ódio”, disse Mujica ao se aposentar do dia a dia da política em 2020. “Aprendi uma dura lição que a vida me impôs, que o ódio entorpece, porque nos faz perder a objetividade diante das coisas”.

Tais sentimentos parecem ter se espalhado pela sociedade como um todo. Orsi fala sobre a importância das “regras não escritas” na política uruguaia, como o respeito à oposição demonstrado por qualquer governo que esteja no poder, lembrando que Lacalle Pou compareceu a sua posse como prefeito, mesmo sendo de um partido rival. “Isso é algo que eu jamais esquecerei”, diz Orsi. Ele tem 55 anos e o presidente tem 49, o que sugere que essas tradições estão de fato sendo transmitidas a uma nova geração de líderes. No entanto, outros uruguaios com quem conversei expressaram um temor de que essas tradições estejam sob pressão — por causa das redes sociais e das pressões que vêm abalando o resto da América Latina após a pandemia. Alguns observaram com preocupação o quarto lugar nas eleições de 2019 conquistado por um partido com tendências populistas. O Chile é exemplo de como até mesmo as histórias de sucesso mais alardeadas da região podem desmoronar rapidamente, com pouco aviso prévio.

E é por isso que Sanguinetti e Mujica, mesmo aos 87 anos, continuam expondo seu relacionamento em vitrines, chegando a escrever um livro recente juntos. “Ainda discordamos sobre muitas coisas, coisas fundamentais”, diz Sanguinetti. “Mas bem, esses velhos estão tentando mostrar às novas gerações que é possível discordar, sem perder a civilidade.”

E acrescentou: “Acho que outros podem fazer isso também. Não há nada de especial no Uruguai.”

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Reading Time: 13 minutesWinter is the editor-in-chief of Americas Quarterly and a seasoned analyst of Latin American politics, with more than 20 years following the region’s ups and downs.

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Tags: José Mujica, Julio Sanguinetti, Luis Lacalle Pou, The Uruguay Issue, Uruguay
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