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Um vírus em mutação: A pandemia e o crime organizado

Como os grupos do crime organizado estão evoluindo e o que os governos podem fazer para detê-los.
Em San Salvador, um soldado guarda uma zona protegida para prevenir a transmissão de COVID-19. YURI CORTEZ/AFP via Getty Images
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Este artigo foi adaptado da reportagem especial da AQ sobre o crime organizado transnacionalRead in English | Leer en español

Durante os primeiros dias da pandemia, alguns acreditavam que a COVID-19 poderia ser negativa para grandes grupos do crime organizado, como o MS-13 e o Cartel de Sinaloa. O “lockdown” em várias cidades do mundo impediu as pessoas de saírem de casa, minando o comércio, tanto legal quanto ilegal. A recessão que se seguiu atingiu as economias latino-americanas com mais força do que qualquer outra, em média, significando menos dinheiro no bolso dos consumidores. À medida que os governos mobilizavam dinheiro e equipes para enfrentar o desafio, falava-se de um novo nível de engajamento que poderia fortalecer os laços entre os cidadãos e o Estado, possivelmente eliminando as organizações criminosas transnacionais (OCTs) em algumas áreas.

Um ano depois, ficou claro que não foi isso que aconteceu. A capacidade operacional, adaptabilidade, redes extensas e cofres recheados das OCTs propiciam oportunidades para explorar os vazios deixados por instituições sobrecarregadas e cadeias de suprimento estressadas em toda a região. Embora ainda seja muito cedo para avaliar quaisquer mudanças duráveis ​​ou resistentes, as organizações criminosas transnacionais estão mostrando indícios de que se adaptaram rápido e até mesmo se tornaram mais fortes de várias maneiras, algumas delas surpreendentes.

De fato, a pandemia pode, em última análise, ser um ponto de virada que marca a aceleração de tendências infelizes relacionadas ao crime e à segurança registradas durante as últimas três décadas. A questão é o que governos podem fazer para impedir que isso continue.

Onde estávamos

Mesmo antes de a pandemia atingir a região, a América Latina e o Caribe eram o berço de alguns dos grupos criminosos mais dominantes, adaptáveis ​​e violentos do mundo. Desde a década de 90, esses grupos evoluíram de estruturas criminosas altamente centralizadas e hierárquicas para redes criminosas em expansão e ágeis envolvidas em uma ampla gama de atividades ilícitas. Hoje, elas administram diversos portfólios de atividades ilegais que incluem desde o tráfico de drogas, de humanos, de armas, de minerais e outras mercadorias ilícitas até extorsão, sequestro, crime cibernético e lavagem de dinheiro. Esses grupos também evoluíram, de empreendimentos criminosos amplamente focados no hemisfério, com base em dinheiro vivo, para redes criminosas globais que estão profundamente entrelaçadas aos setores público e privado em toda a região.

A história recente ilustra a tremenda resiliência desses grupos. Na América do Sul, os países andinos Bolívia, Colômbia e Peru continuam sendo os principais produtores de cocaína, apesar de décadas de políticas de erradicação. As antigas insurgências colombianas e peruanas resistiram às forças de segurança dos governos e evoluíram para OCTs de fato com alcance global e extensos portfólios de atividades ilegais. Após a desmobilização dos paramilitares colombianos em 2006, bandos criminosos, também chamados de BACRIM, surgiram como parte de uma terceira evolução das organizações de tráfico ilícito muito mais abrangentes e diversificadas que suas antecessoras. De acordo com a InSight Crime, uma organização que estuda segurança na América Latina, a Colômbia enfrenta hoje uma quarta geração de organizações criminosas que possuem uma tremenda perspicácia empresarial, maior sofisticação tecnológica e são melhores tanto na estratégia de se integrar à sociedade quanto de fundir negócios legítimos com atividades ilícitas.

Na Venezuela, o regime de Nicolás Maduro transformou o país em um importante polo de drogas que partem da região com destino aos Estados Unidos, África Ocidental e Europa. O Cartel dos Sóis (Cartel de los Soles) é uma importante organização do narcotráfico composta em grande parte por militares venezuelanos. A Venezuela também atua como uma importante fonte de tráfico sexual no hemisfério. O Primeiro Comando da Capital (PCC), com sede em São Paulo, expandiu sua presença além das fronteiras do Brasil para assumir uma participação maior no tráfico internacional de entorpecentes ilícitos produzidos no cone sul. Os cartéis de drogas mexicanos continuam entre as OCTs mais dominantes e poderosas do mundo. Entre eles, o Cartel de Sinaloa, o Jalisco Nova Geração, o Cartel do Golfo e o Cartel Los Zetas operam em todo o mundo e são responsáveis ​​por mais de 61 mil desaparecimentos e um número ainda maior de mortes desde os anos 1960. No fim de 2020, o México estava a caminho de registrar o ano mais violento de sua história, com mais de 40 mil assassinatos e uma taxa de homicídio projetada acima de 27 para cada 100 mil habitantes. A recente prisão e subsequente libertação do ex-ministro da Defesa do México, General Salvador Cienfuegos Zepeda, destaca como as organizações criminosas estão infiltradas no Estado mexicano.

Na América Central, gangues como MS-13 (Mara Salvatrucha) e Barrio 18 sobreviveram a quase duas décadas de políticas severas do governo destinadas a desmantelá-las e, talvez por causa dessas políticas, essas gangues ainda crescem de forma desenfreada com mais de 50 mil membros em El Salvador, Honduras e Guatemala. A América Central atrai outras organizações criminosas transnacionais que estão mudando para a região para tirar proveito de condições econômicas calamitosas, governos debilitados, um estado de direito enfraquecido e da proximidade a mercados importantes nos Estados Unidos. Finalmente, o Caribe está mais uma vez fornecendo às OCTs rotas de contrabando vitais que conectam produtores a consumidores. Fracas restrições a liberação de vistos e cidadania por meio de esquemas de investimento estão atraindo OCTs que procuram usar o Caribe como um centro para várias atividades criminosas, incluindo tráfico ilícito e lavagem de dinheiro.

O que está acontecendo hoje

Por causa da pandemia, as OCTs estão se expandindo para outras áreas, incluindo aquelas que o Estado, sobrecarregado, simplesmente não tem condições de administrar.

Os grupos criminosos têm proporcionado uma espécie de governo paralelo em áreas praticamente abandonadas por instituições estatais. Por exemplo, na América Central as gangues assumiram a tarefa de fazer cumprir as medidas de controle da pandemia emitidas pelo governo e distribuir alimentos para a população em suas comunidades. No México, vários grupos criminosos, como a organização de Chapo Guzmán e o Cartel Jalisco Nova Geração, têm distribuído alimentos às comunidades que controlam como forma de ganhar legitimidade pública. No Brasil, facções em várias favelas do Rio de Janeiro impuseram toques de recolher e distanciamento social aos moradores e ao comércio local, ao mesmo tempo que distribuíam produtos de saneamento, suprimentos médicos e alimentos. Se os cidadãos continuarem a recorrer a grupos criminosos para a prestação de serviços, os governos serão forçados a pagar um alto preço para desalojar esses grupos quando a pandemia acabar. A COVID-19 também está criando novas oportunidades econômicas para esses grupos. À medida que a recessão empurra um número cada vez maior de latinoamericanos para as sombras da economia informal, o comércio de mercadorias ilegais pode se tornar ainda mais atraente. Por exemplo, há registros de um aumento no tráfico de suprimentos médicos, desde máscaras cirúrgicas, desinfetantes e álcool gel a medicamentos e kits de teste. Recentemente, o secretário-geral da INTERPOL, Jürgen Stock, alertou que grupos criminosos planejavam se infiltrar nas cadeias de fornecimento de vacinas.

Dificuldades econômicas estão criando uma “epidemia paralela” de angústia emocional, aumentando a demanda global por substâncias psicotrópicas, muitas delas fortemente controladas ou totalmente ilegais. As OCTs contam hoje com um mercado maior e mais exigente e instituições enfraquecidas. Alguns países, como o Brasil, podem emergir como novos atores transnacionais críticos no fluxo de bens ilícitos, graças à interrupção do fluxo existente e à nova demanda registrada em regiões como a Europa. A maioria das sub-regiões das Américas deve experimentar uma consolidação entre suas redes criminosas transnacionais. Os Andes podem ver um aumento nas safras ilegais, pois elas se tornarão uma das fontes de receita mais seguras para os camponeses e agricultores locais. As organizações criminosas da América Central e do Caribe vão garantir a continuação de seu status ao controlar centros de tráfico e proporcionar empregos para populações carentes, em muitos casos com a ajuda de políticos e agentes estatais corruptos.

Nesse ambiente, atores estatais e não estatais na Rússia, China e outros países poderão fazer parceria com organizações criminosas e instituições corruptas nas Américas de forma mais fácil. Esses países e seus setores privados são conhecidos por contornar o estado de direito e geralmente preferem trabalhar com atores corruptos. A influência crescente da China tem ajudado o presidente venezuelano Nicolás Maduro em particular, permitindo que sua cleptocracia sobreviva.

Os custos sociais da pandemia serão enormes, especialmente considerando que as economias da região podem não se recuperar totalmente aos níveis pré-COVID antes de 2025, de acordo com o Fundo Monetário Internacional. Segundo o Banco Mundial, antes da COVID-19, já havia mais de 20 milhões de “ninis”, neologismo em espanhol que se refere aos jovens que não trabalham nem estudam, na América Latina. Para milhares de jovens, a participação em grupos criminosos pode se tornar a única chance de sobrevivência. O desemprego generalizado e o subemprego também aumentarão a pressão da migração legal e ilegal, alimentando as cadeias de tráfico de humanos. Relatórios mostram, por exemplo, que quando o governo colombiano fechou sua fronteira com a Venezuela para conter o surto de COVID-19, milhares de migrantes venezuelanos desesperados acabaram caindo nas garras de organizações criminosas que operam na área.

Como os governos podem detê-los

Muitos governos nacionais reagirão ao poder crescente das OCTs, e a revolta da opinião pública resultante, redirecionando recursos para expandir as instituições de segurança. Outros governos podem se ver forçados a negociar com organizações criminosas, uma prática já em vigor em El Salvador e comum no nível subnacional, onde os governos locais são fracos. Esse tipo de negociação parecerá politicamente conveniente, especialmente em países com eleições nos próximos 18 meses, mas na ausência de controles institucionais adequados e reformas nas instituições-chave, tais táticas raramente tiveram sucesso no passado.

Qualquer resposta governamental verdadeiramente eficaz deve encarar as devastadoras consequências econômicas da crise de saúde, a erosão da capacidade do Estado e o colapso da legitimidade institucional. Os governos devem cavar fundo e desenterrar vontade política para expandir a luta contra a impunidade, a corrupção generalizada e a falta de capacidade institucional. Eles precisam expandir as reformas estruturais em instituições-chave, como o poder judiciário, as forças policiais federais, estatais e locais, e melhorar a capacidade de fornecer aos cidadãos as necessidades mais básicas, como educação e saúde pública. Sem esforços abrangentes para uma reforma das instituições responsáveis pelo bem-estar da população e um esforço de investimento sustentado em capital humano, qualquer iniciativa tradicional com foco na segurança está fadada ao fracasso.

Investimentos substanciais em capital humano e social devem ser acompanhados por uma maior cobrança das instituições políticas responsáveis. A regressão ao autoritarismo que vários países enfrentam certamente agravará as crises desencadeadas pela pandemia. Portanto, enfrentar o crime organizado transnacional nessas circunstâncias exige que a resiliência dos governos democráticos seja maior do que a resiliência de grupos criminosos profundamente enraizados na região.

Dado o tamanho da emergência e a crescente expansão transnacional das redes criminosas, os governos devem trabalhar multilateralmente para otimizar recursos, compartilhar informações e melhorar a coordenação intergovernamental. O combate às OCTs é um desafio global que exige uma colaboração multilateral mais significativa que reúna países dentro e fora do hemisfério.

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Cruz é o diretor de pesquisa do Centro Kimberly Green para a América Latina, da faculdade de Relações Públicas e Internacionais Steven J. Green, da Universidade Internacional da Flórida. Fonseca dirige o Instituto de Políticas Públicas Jack D. Gordon e é professor adjunto do Departamento de Política e Relações Internacionais, da faculdade de Relações Públicas e Internacionais Steven J. Green, da Universidade Internacional da Flórida.


Tags: organized crime
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